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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O mito de Osíris

O mito de Osíris é um dos mais importantes e influentes da religiosidade do Antigo Egito. Ele articula temas essenciais para o pensamento egípcio: a vida que vence a morte, a ordem que vence o caos, a legitimidade do poder real, a fertilidade da terra, a esperança na vida após a morte. Osíris não é apenas um deus morto; ele é um deus que renasce eternamente, assim como o Nilo que transborda e fertiliza o Egito.

Osíris era um dos grandes deuses da Enéade de Heliópolis*. Filho de Geb (a Terra) e Nut (o Céu), ele governava o Egito como um rei justo e sábio. Era o rei civilizador que ensinou aos humanos a agricultura, o cultivo da videira, a criação das leis e os rituais religiosos, símbolo da ordem, fertilidade e renovação.

  • Uma enéade era um agrupamento de nove divindades ligadas entre si por laços familiares. A palavra enéade é de origem grega; em egípcio usa-se a palavra Pesedjete.

Era irmão de Set (deus do caos, da violência e do deserto), Néftis (senhora da casa) e Ísis (deusa da magia e da maternidade). Osíris se casou com Ísis, enquanto Set se casou com Néftis.

Set sentia inveja do prestígio de Osíris. Isso se tornou rancor quando descobriu que sua esposa havia ficado grávida do irmão. Néftis sentia-se negligenciada por seu marido, associado à infertilidade. Ela desejava a fertilidade e a luz de Osíris. Néftis então se disfarçou de Ísis, usando perfumes, roupas e magia para enganar o deus. Dessa união nasceu Anúbis, que viria a se tornar deus dos mortos, da mumificação e da proteção dos túmulos.

Enquanto Ísis entendeu a traição conjugal de Néftis com compaixão e até vê Anúbis como filho*, Set viu sua incapacidade como esposo e figura viril evidenciada, aumentando a rivalidade polarizada com seu irmão (ordem vs. caos, fértil vs. infértil). Além disso, o filho gerado poderia ser interpretado como um herdeiro mais legítimo que qualquer possível filho de Set, ameaçando diretamente sua posição no panteão e entre os vivos.

  • Ísis era devotada, estratégica, sábia: ela sempre agia visando restaurar o cosmos. O adultério não foi apresentado como uma crise conjugal, e sim como uma peça no grande drama de morte e renascimento. Então, ela não reagiu com ciúmes humanos, pois compreendeu que sua irmã sofria com o abandono de Set. Inclusive, Ísis tem Anúbis como um filho, que passa a servi-la e protege o corpo de Osíris, tornando-se o deus mais fiel à ordem funerária. Ísis, Néftis e Anúbis formam uma tríade dos ritos funerários: Ísis fica ao pé do sarcófago, Néftis fica à cabeceira e Anúbis preside o embalsamamento.

O primeiro ataque

Set elaborou, então, um plano para subjugar seu irmão: construiu um belo cofre exatamente do tamanho do corpo de Osíris (o primeiro sarcófago) e, durante uma festa, prometeu presentear quem coubesse perfeitamente nele; quando Osíris deitou no cofre, Set e seus conspiradores fecharam a tampa, selaram-na com chumbo e jogaram o cofre no Nilo. Set determinou, assim, o fim da ordem e o início do caos.

O cofre flutuou pela correnteza, atravessou pântanos e canais, seguiu até o mar e encalhou na costa da Fenícia (Líbano atual). Encostado em uma árvore (um tamarisco ou um sicômoro), acabou tendo a madeira crescendo ao redor: o sarcófago passou a fazer parte da árvore.

O rei da cidade de Byblos, sabendo da beleza do tronco, mandou derrubar a árvore para usá-la como coluna do palácio. O corpo de Osíris passou a sustentar metaforicamente o palácio de um rei estrangeiro, e o reino misteriosamente começou a prosperar.

Ísis começou, então, uma jornada mágica e diplomática. Ela chegou à cidade sem revelar quem é. Ela se instalou perto de uma fonte – em versões, sob a forma de simples viajante, criada ou mulher silenciosa de semblante nobre. As criadas da rainha de Byblos a encontraram, encantaram-se com sua dignidade e a levaram ao palácio para se tornar a ama de um dos príncipes. Certa noite, Ísis colocou o bebê nas chamas para queimar sua mortalidade e foi surpreendida pela rainha, que gritou e interrompeu a magia. Nesse momento, a deusa revelou sua natureza e todo o palácio percebeu que estava hospedando uma divindade.

Ísis disse, então, ao rei e à rainha: “Eu busco o corpo de meu marido. O que vocês chamam de coluna é meu tesouro.” Desesperado por ter tocado algo sagrado, o rei entregou a coluna imediatamente. A deusa retirou o sarcófago de Osíris da coluna e o abraçou. Entoou os primeiros lamentos sagrados (manjeres) e, em seguida, abriu a tampa do cofre para ungir o corpo, perfumá-lo com leite de tamarisco (símbolo de renascimento) e envolvê-lo com linho. Ísis levou o corpo escondido em um barco para o Egito e o ocultou em território sagrado, nas ilhas pantanosas do Delta.

O segundo ataque

O problema é que Set caçava na região e reconheceu o corpo recuperado de Osíris. Furioso,desmembrou-o em várias partes – para evitar a ressurreição –, espalhando-os pelos nomos* (províncias) do Egito.

  • Apesar de haverem textos e iconografias que aumentam o número de partes em que Set desmembrou o corpo de Osíris (até 42 nomos, inserindo as vísceras), o mais tradicional é afirmar que foram 14 partes por estar ligado às fases da lua (14 dias de lua crescente e 14 dias de lua minguante): cabeça, braço direito, braço esquerdo, mão direita, mão esquerda, peito/coração, coluna (djed), abdômen, pênis (que não foi encontrado e, por isso, não são 15 partes), nádegas, perna direita, perna esquerda, pé direito e pé esquerdo. O ciclo lunar foi associado à morte e ao renascimento de Osíris.

Para os egípcios, Ísis era a única capaz de recompor um corpo morto, acordar a força vital (ka), ativar magia com palavras verdadeiras (heka) e gerar vida a partir da morte. Então, tomada pelo luto, Ísis partiu sozinha em busca dos fragmentos de seu marido. Ela vestiu roupas de viajante, cortou o cabelo, abandonou seu status de rainha e adotou o papel da viúva peregrina divina. Navegou pelo Nilo num pequeno barco de papiro (eram considerados protegidos contra crocodilos, que não atacavam por respeito à deusa). Ela consultou serpentes, crocodilos, pássaros, espíritos do Nilo, e até crianças (que eram consideradas puras e capazes de ver o invisível).

A tradição varia, mas muitas fontes colocam a cidade de Abydos como o primeiro local onde Ísis encontrou um pedaço de Osíris: o coração, o centro da vida e o início da restauração da ordem. Cada vez que Ísis encontrava um pedaço, ela chorava por ele (e o Nilo inundava), purificava-o, envolvia-o em linho, realizava pequenos rituais funerários, e seguia adiante.

Cada cidade que guardava um fragmento (uma relíquia sagrada) erguia um santuário para Osíris (“túmulos de Osíris”). Assim, o corpo de Osíris tornou-se um mapa de todo o Egito e criou uma geografia sagrada: cada parte do corpo, um nomo, um ponto de poder ritual.

Ressurreição mágica e fálica

A única parte que Ísis não encontrou foi o pênis de Osíris, que teria sido engolido por um peixe (oxirrinco, lepidoto ou fagrus, dependendo da versão) ou se perdeu nas águas primordiais do Nilo. Comer o tal peixe chegou a ser proibido em várias partes do Egito, pois seria ingerir simbolicamente a energia sexual divina, profanar o princípio da fertilidade e se apropriar do que não pertence aos humanos.*

  • No Egito, o poder sexual divino não é visto como luxúria, mas como força vital e princípio de continuidade do cosmos. Então, o falo de Osíris não é apenas uma parte do corpo perdida: é um eixo simbólico que une morte, fertilidade, sexualidade ritual, poder criador e a própria ordem do cosmos. Enquanto os outros fragmentos do corpo foram distribuídos pelos nomos, o falo “saiu da terra”, não está em templo nenhum (não há reivindicação territorial de posse), não pode ser possuído por sacerdotes (não há monopólio de poder), não é encontrado por nenhuma divindade. Ele é o ausente, o irredutível, a parte que não retorna ao mundo material, e isso não é falha, é excesso. Isso transforma o falo de Osíris em um mistério, não um objeto. O falo é invisível porque é onipresente, não localizado, cósmico. Ele não poderia, dentro do mito, existir como simples órgão. O falo perdido também tinha uma leitura agrícola, pois ele se torna a semente dispersa pelo Nilo, que fertiliza tudo. Osíris é o grão que morre e renasce, já que seu corpo foi semeado pela terra do Egito. Ele torna Osíris mais do que um morto recomposto: ele se torna a própria força geradora que permeia o Nilo, a terra e as plantas. Assim como o Nilo fertiliza o Egito, Osíris fertiliza a terra com sua própria morte e renascimento.

Quando Ísis encontrou o último fragmento (normalmente a cabeça ou os pés, dependendo da tradição), ela retornou ao local onde havia reunido todos os fragmentos encontrados para realizar um ritual de ressurreição que culminou na primeira mumificação da história. Com a ajuda de Néftis, Anúbis (como filho adotado) e Thot (deus da palavra), Ísis desembrulhou os fragmentos, purificou-os e perfumou-os novamente (embalsamamento), e reintegrou-os ao corpo, embrulhando-os em novas faixas de linho.

Mas sem o pênis, faltava o ponto que permitiria dar continuidade à linhagem e restaurar a ordem cósmica, o eixo criador que faz a vida atravessar a morte. Fontes egípcias descrevem a reconstrução do falo de forma velada, mas consistente. Primeiro, Ísis insuflou o sopro da vida, ou seja, atraíu o ka de Osíris de volta ao corpo, não para reanimar o cadáver, mas para despertar seu poder criador: em alguns textos, ela é chamada de “Aquela que faz o ka se erguer.” Em seguida, a deusa nomeou o falo usando palavras mágicas (hekas) e isso criou seu princípio. Um trecho comum nos hinos diz: “O que Ísis nomeia, toma forma.”, pois no Egito a palavra não descreve, ela faz existir.

Alguns textos falam de uma modelagem simbólica, onde Ísis teria moldado um falo feito de ouro (incorruptibilidade e eternidade), cera ou lama do Nilo, dependendo da tradição. Em textos tardios, ele é chamado de “falo dourado”, “o membro criado pela magia”, “o pilar da vida”. Porém, ele é entendido mais como um princípio de criação do que como um peça anatômica.

Concepção divina

Por fim, Ísis se transformou em um milhafre* (falcão feminino) e planou sobre o corpo de Osíris, batendo as asas sobre ele até pousar em seu peito. Esse movimento simboliza a união ritual e a fecundação divina, pois, nesse momento aconteceu a transferência da potência criadora de Osíris para Ísis e, assim, a deusa fica grávida. Os textos dizem: “Ela recebeu a semente do deus.”, “O vento da vida passou para dentro dela”, mas através de um processo mágico-cosmogônico e não biológico. A iconografia nunca mostra o ato, justamente por não se tratar de sexualidade humana: não foi um ato sexual, mas litúrgico e cósmico.

  • No Egito antigo, milhafre era a ave da maternidade e do luto, pois vocalizaria sons semelhantes a lamentos humanos.

No Egito, a sexualidade divina é simbólica e não biológica, pois os deuses não estavam presos às limitações físicas humanas. O poder sexual divino não era visto como luxúria, mas como força vital e princípio de continuidade do cosmos. Então, o falo de Osíris não era apenas uma parte do corpo perdida ou um instrumento de prazer e reprodução biológica: era um eixo simbólico que une morte, fertilidade, sexualidade ritual, poder criador e a própria ordem do cosmos. Enquanto os outros fragmentos do corpo foram distribuídos pelos nomos, o falo “saiu da terra”, não estava em templo nenhum (não há reivindicação territorial de posse), não podia ser possuído por sacerdotes (não há monopólio de poder), não foi encontrado por nenhuma divindade. Ele é o ausente, o irredutível, a parte que não retorna ao mundo material. Isso transforma o falo de Osíris em um mistério, não um objeto. O falo é invisível porque é onipresente, não localizado, cósmico. Ele não poderia, dentro do mito, existir como simples órgão.

Osíris voltou à vida, mas não retornou à Terra: ele se tornou o Senhor do Duat (o mundo dos mortos), o Juiz das almas, símbolo de ressurreição, fertilidade e ciclo da natureza. Osíris é o grão que morre e renasce, já que seu corpo foi espalhado pelo Egito. O gesto de Isis de recriar o falo é, simbolicamente, a germinação, a fecundação da terra pela água do Nilo, o retorno da vida após a inundação. Assim como o Nilo fertiliza o Egito, Osíris fertiliza a terra com sua própria morte e renascimento. Então, o falo perdido transforma Osíris em mais do que um morto recomposto: ele é a semente dispersa pelo Egito, a própria força geradora que permeia o Nilo, a terra e as plantas.

Hórus, o herdeiro da ordem cósmica, surgiu da concepção divina, com cabeça de falcão. O deus cresceu escondido para escapar do ódio de Set. Ao atingir a idade adulta, lutou contra o tio para reclamar o trono de seu pai. Após uma longa série de combates e julgamentos divinos, Hórus venceu. Assim, o faraó vivo passou a ser identificado com Hórus, e o faraó morto, com Osíris.