quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Urano

Urano (ou Ouranos, em grego, "o que cobre" ou "o que envolve") era a divindade grega que personificava o céu estrelado. Os gregos imaginavam o céu como uma cúpula sólida de bronze, decorada com estrelas, cujas bordas desciam para repousar sobre os limites mais externos da terra plana.

Era considerado, pela maioria, um deus primordial, a primeira divindade a assumir o controle do universo, sem ascendência. Porém, alguns estudiosos dizem que ele descendia de Éter (ar) e Hemera (dia), enquanto, segundo os hinos órficos, Urano era filho da noite, Nix.

Na Teogonia de Hesíodo, Urano emergiu (ou se desprendeu) de Gaia, a Terra, de modo assexuado e imediatamente a recobriu com seu manto estrelado em toda a sua extensão, tornando-se então seu consorte (algumas leituras, o colocam como estuprador). A partir dessa união entre o céu e a terra, o mundo começou efetivamente a tomar forma. Junto a Gaia, então, Urano é o ancestral da maioria dos deuses gregos.

O céu a terra eram uma só forma;
e quando se separaram um do outro, em dois,
criaram todas as coisas e levaram-nas à luz:
árvores, aves, animais, seres que o mar alimenta
e a raça dos mortais.
(Eurípedes)

Teve vários filhos (ou irmãos, se considerarmos Gaia sua esposa-mãe): primeiro, geraram criaturas poderosas, selvagens e incontroláveis, que obedeciam apenas sua própria natureza, dentre os quais os três ciclopes (Brontes, o trovão; Estérope, o relâmpago; e Arges, o raio), os três hecatônquiros (Coto, Briaréu e Gigues, gigantes de cem braços e cinquenta cabeças); e, posteriormente, os menos selvagens, mas igualmente poderosos Titãs e Titânides, em seis pares.

Todavia, ele detestava as poderosas “crianças” geradas – e temia ser destronado por elas. À medida que nasciam, mantinha-os aprisionados nas entranhas da Terra (o Tártaro), sem ver a luz, e se deliciava com essa crueldade. Isso causou não só um impasse na criação do mundo como também uma grande dor em Gaia, que, então, começou a conspirar contra o marido/filho, instigando seus filhos a se rebelarem contra o pai. Com o ferro (ou sílex) mais resistente de suas entranhas, Gaia forjou uma afiada foice (instrumento sagrado que cortas as sementes, e semente em grego é spérma, “esperma”) e ofereceu a Cronos, filho mais novo, titã destemido e de pensamentos tortuosos. Armado da inquebrável foice, Cronos se escondeu e, à noite, quando Urano recobriu Gaia, decepou os órgãos sexuais do pai com um só golpe, lançando-os ao mar.

Rápida [Gaia] criou o gênero do grisalho aço,
forjou grande podão e indicou aos filhos.
Disse com ousadia, ofendida no coração:
“Filhos meus e do pai estólido, se quiserdes
ter-me fé, puniremos o maligno ultraje de vosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas”.
Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém
vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar
devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa:
“Mãe, isto eu prometo e cumprirei
a obra, porque nefando não me importa o nosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas”.
Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa,
colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos
a foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil.
Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra
desejando amor sobrepairou e estendeu-se
a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão
esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice
longa e dentada. E do pai o pênis
ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para trás.
(Hesíodo)

A Mutilação de Urano por Saturno, de Giorgio Vasari e Gherardi Christofano (século XVI)
Releitura medieval da emasculação de Urano.

Porém, a potência criadora de Urano era tamanha que do seu sangue que caiu sobre Gaia (terra), nasceram os gigantes, as Erínias, as ninfas Melíades e segundo alguns, os telquines; e a partir da genitália lançada ao mar (em alguns casos, só os testículos, em outros, somente gotas de sêmen), nasceu Afrodite. Alguns dizem que a fabulosa tribo dos feácios nasceu da foice ensanguentada que ou se tornou a ilha de Corfu ou foi enterrada na costa oeste do Chipre, em um local chamado Drepanum (foice).

Cronos libertou, a seguir, todos os irmãos presos no interior da terra e se tornou governante dos deuses. Urano continuou a cobrir Gaia diariamente, mas, impotente, tornou-se uma divindade ociosa, sustentada pelo titã Atlas – não sem antes amaldiçoar (ou seria, profetizar?) seu algoz que ele seria destronado por um filho assim como ele havia sido.

* Grato a Zeus que o vingou, Urano o advertiu que o filho que ele teria de Métis o destronaria. Por isso, Zeus a engoliu, o que resultou no nascimento de Atena.

Algumas lendas, dizem que Cronos teve a ajuda de seus irmãos Jápeto, Hipérion, Ceos e Crios. Eles se posicionaram cada um em um dos quatro cantos da terra e seguraram um membro de Urano enquanto Cronos o emasculava. Cada irmão levou um membro do pai para governar um canto da terra: Jápeto foi para o oeste, Hipérion para o leste, Ceos para o sul e Crios para o norte.

Interessante dizer que Urano foi raramente considerado como antropomórfico – à parte a genitália do mito da emasculação. Em expressões arcaicas dos poemas homéricos, o termo para céu se confunde com o termo para Olimpo, a morada dos deuses. Do ponto de vista simbólico, Urano traduz uma proliferação criadora desmedida e indiferenciada, cuja abundância acaba por destruir o que foi gerado.

Aeon e Gaia em mosaico de villa romana em Sentinum.
Sem culto ou imagem na arte grega primitiva (podia ser representado por um touro celestial branco ou até mesmo azul), Urano foi frequentemente descrito pelos romanos como Aeon, o deus do tempo eterno, ou Caelus, o céu. Na Mesopotâmia, seria An ou Anu. As representações egípcias de Nut (deusa do céu) e Geb (deus da terra) lembram muito a ideia concebida de Urano e Gaia. É o sétimo planeta do sistema solar.