segunda-feira, 26 de outubro de 2015

HÉRCULES: Os Doze Trabalhos - O Javali do Erimanto

Depois de matar dois monstros e trazer vivo um animal dócil como a corça, Euristeu decidiu que Hércules deveria capturar com vida o temível javali que devastava as florestas da escura montanha Erimanto, no extremo noroeste da Arcádia. Era um enorme porco selvagem, com grandes presas e um temperamento agressivo que ia destruindo tudo em seu caminho.

Hércules e o Javali do Erimanto, estátua em bronze de Louis Tuaillon (1904), Berlin.

Hércules e Folo, em ânfora pintada, cerca de 520 a.C.
No caminho para cumprir sua tarefa, o herói encontrou boa hospitalidade na casa de seu amigo centauro Folo, que lhe ofereceu abrigo e carne cozida (centauros só comiam carne crua), no Monte Pélion, na Tessália. Durante a ceia, Hércules solicitou vinho a Folo, mas o centauro hesitou em servi-lo, pois a única garrafa estava prometida como oferenda a Dioniso. O herói conseguiu convencer o amigo e imediatamente o odor intoxicante do vinho atraiu os outros centauros das montanhas que queriam saber quem violou o sagrado presente. Armados com paus e pedras, atacaram Hércules num frenesi de raiva. O herói lançou uma saraivada de flechas contra os centauros, e os poucos que sobreviveram se acuaram e se esconderam na caverna do centauro Quíron, antigo professor de Hércules. Infelizmente, uma seta envenenada acabou atingindo o imortal Quíron, que sofreu um ferimento incurável. Folo, ao arrancar a flecha do corpo de um centauro morto, feriu-se no casco e veio rapidamente a morrer dias depois de forma agonizante por causa do veneno da Hidra contido na flecha. Hércules fez-lhe magníficos funerais, enterrando-o na montanha que passou a ter seu nome.

Cheio de remorso, Hércules seguiu para rastrear o javali - o que não foi muito difícil pois o som do bufar e do bater dos cascos era audível em toda a floresta. Perseguiu o animal até encurralá-lo nos picos nevados do Monte Erimanto, onde aproveitou o terreno escorregadio para desequilibrá-lo e derrubá-lo. Com o javali desacordado, amarrou-o e o levou até o palácio de Euristeu, que, assustado ao ver o animal no ombro do herói, foi se esconder dentro de um caldeirão de bronze.

Hércules, o javali e Euristeu em ânfora pintada, cerca de 525 a.C.

O simbolismo do javali é antiquíssimo e está ligado à autoridade espiritual que desenterra do âmago seus nutrientes, assim como o animal tira raízes de árvores para se alimentar. Apoderando-se do poder espiritual, Hércules deu mais um passo em seu rito de perdão.


PARTE: I - II - III - IV - V
TRABALHO: I - II - III - IV - V - VI - VII - VIII - IX - X - XI - XII
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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Mitologia em propaganda de perfume

Há dois meses, a marca de moda Paco Rabanne lançou a fragrância Olympéa, a versão feminina do já famoso Invictus. O anúncio estrelado pela modelo brasileira Luma Grothe tem um visual de mitologia grega, mesmo que a marca o venda para a "Cleópatra moderna". Confira:


Já o anúncio do perfume masculino de 2013 tem um jeitão de atleta de futebol americano (o australiano Nick Youngquest) elevado à divindade:


A Versace também tem seus perfumes mitológicos: Eros (com Brian Shimansky fazendo o deus do amor) e Eros pour Femme (com Lara Stone mostrando quem manda na flecha do deus)



Experimentem!

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

HÉRCULES: Os Doze Trabalhos - A Corça da Cerineia

Afresco de Adolf Schmidt, séc. XIX.

Diz-se que a ninfa Taígete, para fugir do assédio implacável de Zeus, foi transformada pela deusa Ártemis em uma enorme corça (maior que um touro) com chifres de ouro maciço polido e pés de bronze, que corria com assombrosa rapidez e nunca se cansava. Sua velocidade era tamanha que era capaz de ultrapassar uma flecha e até mesmo conseguiu escapar da própria deusa, quando esta capturou um rebanho de cervos para puxar sua carruagem. Após essa fuga, Hera conduziu a corça para o Monte Cerineia.

Euristeu conferiu esse terceiro trabalho a Hércules, porque sabia que a corça era propriedade sagrada de Ártemis e Hera e isso colocaria o herói contra as deusas. Existem duas versões desta tarefa, que levou um ano para ser realizada e percorreu uma larga extensão de terra até os Hiperbóreos:
  1. Hércules a perseguiu incansavelmente sem nunca alcançá-la, até que, exausta, a corça parou para beber água e foi ferida levemente por uma das flechas do herói.
  2. O herói preparou uma armadilha no Templo de Ártemis com uma rede para não machucar a corça. Assim que o animal entrou no templo para descansar da perseguição, Hércules soltou a rede e o capturou.
Hércules e a Corça, estátua em bronze
de Giambologna
No caminho de volta a Micenas com a corça nos ombros, Hércules encontrou Apolo e uma furiosa Ártemis, que o acusou de sacrilégio e o sentenciou a morte. O herói contou aos gêmeos divinos a razão da captura e seu juramento ao rei Euristeu. A compadecida deusa curou, então, a corça e permitiu que ele levasse o animal sagrado com a condição que ela fosse libertada logo após que o rei a visse. Euristeu decidiu ficar com a corça, no momento que colocou os olhos nela, mas Hércules não podia permitir. Ele disse para o rei vir pegá-la e a soltou, porém ela correu de volta para o templo da deusa.

A simbologia da corça apresenta dois aspectos de interpretação: por ser consagrada a Ártemis carregava pureza e virgindade acentuadamente, mas o bronze em seus pés poderia pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos terrenos. O metal isolava o animal do mundo profano, mas, ao mesmo tempo, o aterrava, impedindo voos mais altos. Seus chifres de ouro representavam a força da alma, um vigor capaz de preservá-la de qualquer fraqueza espiritual. É como se toda a dificuldade na execução do trabalho fosse necessário para o herói usar de estratégia e delicadeza para lidar com a sensibilidade ambígua inerente ao indivíduo.


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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

HÉRCULES: Os Doze Trabalhos - A Hidra de Lerna

Estátua de Hercules e a Hidra de Lerna na fachada
do Palácio Imperial de Hofburg em Viena, Áustria.
Filha dos monstros Equidna e Tifão (ou de Styx e do titã Palas), a Hidra vivia nos pântanos perto da antiga cidade de Lerna (também na Argólida), aterrorizando a vizinhança e se alimentando de rebanhos e moradores locais. Era um dragão com corpo canídeo, que possuía nove cabeças (uma delas praticamente imortal, pois não sofria dano de nenhuma arma) em pescoços serpentílicos, que se regeneravam logo que eram cortadas. O número nove de cabeças é o padrão geral, mas desvia de cinco até cem, porque em algumas versões ao invés da cabeça regenerar, ela se dividia em outras duas. Além disso, fala-se sobre o sangue venenoso da Hidra e o que poderia ser sua respiração sulfurosa ou um vapor letal que exalava de suas feridas.

Hércules viajou até Lerna em uma veloz carruagem que tinha seu fiel sobrinho Iolau como cocheiro. Quando finalmente chegaram, o herói pediu que o rapaz ficasse com os cavalos, enquanto ele atirava flechas em chamas para tirar a Hidra de seu covil. O monstro saiu e atacou imediatamente seu oponente.


Com sua espada de bronze (em algumas versões, uma foice), Hércules corajosamente foi cortando as cabeças da Hidra em meio a seu bafo mortal, mas logo percebeu que novas cabeças cresciam no lugar das decapitadas. O herói pediu ajuda para Iolau, que ia cauterizando as feridas abertas com uma tocha em brasa retirada de um árvore que pegou fogo com as flechas flamejantes de Hércules.


Para a cabeça invulnerável remanescente, Hércules desferiu um golpe atordoante com sua clava e arrancou a cabeça com as próprias mãos. Enterrou-a em um buraco profundo na terra e colocou uma enorme pedra em cima. Por fim, instruído por Atena, o herói banhou suas flechas no sangue da serpente para que ficassem envenenadas.

Um relevo em mármore datado do século II a.C. encontrado em Lerna, mostra Hércules enfrentando a Hidra com um enorme caranguejo próximo aos seus pés. Isso ratifica a lenda que Hera teria enviado Karkinos, um enorme caranguejo, para atrapalhar as ações do herói, mas o animal acabou pisoteado. A deusa ascendeu seu casco às estrelas, convertendo-se na Constelação (e signo) de Câncer. Alguns estudiosos sugerem que essa adição ao mito tenha sido feita para que os trabalhos correspondessem ao zodíaco. A Hidra também foi elevada às estrelas como a maior das constelações, vizinha à de Câncer.

Euristeu não se impressionou com a façanha de Hércules, que levou as cabeças da Hidra como prova. Considerando a ajuda de Iolau, o rei não contabilizou esta tarefa dentro das dez previstas inicialmente. Essa tecnicalidade não impediu os escritores e artesãos de exaltarem o feito, mas outros, como Pausanias, não só o desconsideraram como reduziram a Hidra a uma grande serpente aquática.


A Hidra simbolizava os vícios banais múltiplos capitaneados pela vaidade: enquanto ela não é dominada as cabeças, configuração dos vícios, renascem. Tudo que tem contato com os vícios, ou deles procede (o sangue venenoso), corrompe e se corrompe. A espada ou a foice representam a espada espiritual e a tocha, a purificação pela qual o herói precisava passar.

Uma interpretação única deste trabalho diz que foi um aterramento do pântano. A hidra era, na verdade, o pântano em si e as cabeças do monstro eram os rios que o alimentavam. O bafo mortal era o cheiro de podridão do local. As “flechas envenenadas” foram mergulhadas no caldo séptico do pântano e matavam por infecção.


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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

HÉRCULES: Os Doze Trabalhos - O Leão da Nemeia

Hércules e o Leão da Nemeia, óleo sobre tela de
Peter Paul Rubens. Séc. XVIII.
Euristeu decidiu (após um sonho enviado por Hera) que o primeiro trabalho do herói seria livrar a planície da Nemeia, no Peloponeso, de um enorme, selvagem e feroz leão de pele dourada e impenetrável. O animal é geralmente considerado filho dos monstros Tifão e Equidna, mas existem textos que dizem que ele é filho de Equidna com seu filho Ortros, o cão de duas cabeças. Uns ainda dizem que ele seria filho de Cérbero com a Quimera, ou até mesmo de Zeus e Selene, a deusa da noite enluarada, que o amamentou e lhe deu invulnerabilidade.

Hércules partiu para a Argólida com seu arco e flecha (versões do período clássico dizem que ele também carregava uma espada de bronze) em busca do covil do leão. Na cidade de Cleonae, hospedou-se na casa de Molorchus, um pobre trabalhador que perdera seu filho para o leão e ofereceu fazer um sacrifício para que o herói tivesse uma boa caçada. Mas Hércules pediu que ele esperasse 30 dias: se ele conseguisse realizar a tarefa, Molorchus deveria fazer um sacrifício a Zeus. Se ele fracassasse, o sacrifício seria feito em seu nome.

Hércules lutando contra o Leão da Nemeia,
estátua em mármore. Roma, séc. II.
No meio da floresta da Nemeia, Hércules ouviu um estrondoso rugido e, ao virar na direção do som, se deparou com a criatura partindo para cima dele. Tirou, então, seu arco e disparou uma flecha que rebateu no corpo do leão. Disparou outra flecha e nada: o herói não sabia da pele impenetrável da criatura. O leão saltou sobre Hércules, mas o herói usou sua clava de oliveira para atordoá-lo com um único golpe. Percebendo que nenhuma arma poderia matar o monstro, o herói envolveu seus grandes braços ao redor do pescoço do leão e, com uma força incrível, o estrangulou até a morte (daí o nome “mata-leão” para o golpe de estrangulamento em lutas marciais). Algumas lendas, colocam esse combate dentro da caverna do leão, que tinha duas entradas, mas uma teria sido bloqueada com pedras por Hércules para encurralar a criatura.

No fim da luta, Hércules usou as garras do animal para esfolá-lo e vestir sua pele dourada invulnerável como armadura. Desde então carregou o epíteto de Leontothýmon, “o coração de leão”. O dramaturgo Eurípedes escreveu que a pele do leão “veio do bosque de Zeus, santuário na Nemeia”. Alguns escritores discordam disto e dizem que a pele usada por Hércules era do leão que matara aos 18 anos na Beócia.

Óleo dito como Hércules e o Leão da Nemeia, porém, por ser um herói imberbe, pode ser a representação do leão morto na Beócia.

Hércules levou os restos do leão até a casa de Molorchus e ambos fizeram o sacrifício do cadáver a Zeus, que ascendeu o animal às estrelas, tornando-se a Constelação (e signo) de Leão. Ao ver Hércules entrar em Micenas com a pele do leão no corpo, o amendrontado Euristeu proibiu-o de entrar em seu palácio e passou a se comunicar com o herói a partir de um arauto (Copreu, filho de Pelops).

Constelação de Leão (Leo). Regulus (ou Cor Leonis, coração do leão) é a estrela mais brilhante.

Nemeia (hoje chamada de Heracléia) estabeleceu os Jogos Nemeus em homenagem a Zeus e Hércules. Semelhante aos importantes Jogos de Olímpia (resgatados pelo Barão de Coubertin como os Jogos Olímpicos), os Jogos Nemeus ocupavam o quarto lugar em importância, atrás do olimpiano, do Píticos (de Delfos, em homenagem a Apolo) e do Ístmicos (em Corinto).


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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

HÉRCULES: Muito mais que doze

Cada trabalho do herói se tornou uma aventura singular, pois aconteceram outros episódios que são até chamados de trabalhos secundários. Ao todo um vastíssimo plano, cheio de labirintos, desvios, descidas, subidas, quedas, acessos, uma viagem em meio a muitas trevas para que, ao final, um novo ser pudesse surgir. Simbolicamente, os acontecimentos representam o trânsito do Sol pelas doze constelações zodiacais, uma proposta de autotransformação, o caminho da libertação. O interessante é que inicialmente eram dez tarefas, mas Euristeu passou para doze porque o herói contou com a ajuda do seu sobrinho Iolau para derrotar a Hidra e utilizou um rio para limpar os estábulos de Augias.

Relevo romano (séc. III a.C.) com nove dos Doze Trabalhos. (clique para aumentar)

A pedido de Zeus, alguns deuses olimpianos ofereceram presentes* e conselhos a Alcides: de Atena recebeu um peplo (túnica presa nos ombros); de Poseidon, cavalos velozes; de Hefesto, uma couraça de bronze para proteger seu coração; de Hermes, uma espada de bronze; de Helios, uma biga; de Apolo, um arco com flechas de bronze que, segundo as palavras do deus, o herói só dominaria o tiro a partir do nono trabalho; e do próprio Zeus, um escudo. De um bosque próximo a Argos, retirou um tronco de oliveira selvagem e fez uma clava como presente para si mesmo. Com certa impaciência ouviu conselhos, afastou os professores, e renunciou ao nome Alcides, passando a se chamar Héracles (Hércules), “em glória à deusa Hera.
* Alguns dizem que Alcides agradeceu os presentes, porém, só ficou com a espada e o arco, deixando os outros guardados no bosque. Outros dizem que esses presentes foram dados por ocasião de seu casamento com Megara.
Existem muitas variações na ordem dos trabalhos designados ao heroí. Umas versões utilizam a ordem dos metopes (relevos esculpidos na arquitrave do entablemento) do Templo de Zeus, em Olímpia, enquanto outros seguem os textos antigos. Mas, independente da ordem, o conteúdo é bem semelhante. A ordem mas tradicional é:
  1. Leão da Nemeia
  2. Hidra de Lerna
  3. Corça da Cerineia
  4. Javali do Erimanto
  5. Cavalariças de Augias
  6. Aves do Estínfale
  7. Touro de Creta
  8. Éguas de Diomedes
  9. Cinturão de Hipólita
  10. Bois de Gerião
  11. Pomos das Hespérides
  12. Cérbero

Os mitógrafos helenísticos dividiram os trabalhos em duas séries de seis: os seis primeiros foram realizados na própria Grécia, mas especificamente na região do Peloponeso, e os seis últimos levaram Hércules a diversas partes do mundo, inclusive a lugares míticos, de Creta ao Hades.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

HÉRCULES: Atitudes e consequências

Mais do que convencido da origem divina de Alcides, Anfitrião providenciou-lhe a melhor educação da época: condução de carros de guerra (ele mesmo o ensinou), luta, armas (por Castor), música (por Eumolpo) e canto, sendo estas duas últimas as habilidades que o rapaz não conseguia ser o melhor. Durante o ensino da escrita e da lira por Lino, filho de Apolo com a musa Urânia, Alcides matou seu professor. Conta-se que os dedos grossos do rapaz sempre arrebentavam as cordas do instrumento e, certa vez, Lino começou a praguejar e bater em Alcides. Foi o suficiente para ele arremessar a lira quebrada na cabeça do professor com uma força letal. Alcides foi levado a um tribunal, mas seus conhecimentos do política ("aquele que é atacado tem o direito de retaliar") o livraram da punição.

Após essa explosão de ira, Anfitrião decidiu enviá-lo para um treinamento com pastores e caçadores. Ensinado por Êurito, rei da Ecália, rapidamente dominou o arco e suas flechas nunca erravam o alvo. Num pastoreio, fui visitado por duas ninfas que lhe ofereceram duas escolhas de vida: uma confortável e fácil, a outra gloriosa e brutal. Ele teria decidido pela segunda opção.

Sua primeira façanha deu-se aos 18 anos quando se dirigia a Beócia: perseguiu e matou (partindo-lhe a espinha) um enorme leão que devorava os rebanhos de Anfitrião e de Téspio. A caçada durou cinquenta dias consecutivos no Monte Citéron, durante os quais o herói foi hóspede de Téspio e se uniu a cada uma das cinquenta filhas do rei. Posteriormente, isso iria criar uma aguerrida descendência entre os Tespíadas, que se espalharam até a Sardenha.*
* Téspio prometera a Alcides que sua primogênita, Prócris, o esperaria na cama enquanto a caçada pelo leão durasse. Porém, o herói chegava tão fatigado que não percebia que o rei mandava uma filha diferente por noite, objetivando uma poderosa descendência. A potência sexual de Hércules tornou-se mitologicamente incomparável.
Alcides, seu sobrinho Iolau e seus amigos Hilas e Poias participaram da jornada pelo velocino de ouro a bordo do navio Argo. Durante uma parada dos Argonautas em Mísia (na Ásia menor), Hilas foi atraído por náiades para as profundezas de um lago. Alcides voltava do bosque onde fora buscar madeira para refazer seu remo partido, quando tomou conhecimento do sumiço de seu amigo. Abandonou, então, a expedição para procurá-lo e o navio acabou zarpando sem ele.

Hilas e as ninfas. Óleo de John William Waterhouse (1896)

De volta a Tebas*, Alcides decidiu livrar a cidade do tributo de cem vacas anuais a ser pago por antigos conflitos com Ergino, rei dos Orcômenos. Ao encontrar-se com os cobradores, o jovem semideus arrancou-lhes as orelhas e os narizes, pendurou-os em torno do pescoço de cada um e os enviou de volta a Ergino, que declarou guerra contra Tebas. Durante o combate, Anfitrião foi morto, deixando Alcides furioso: matou Ergino a flechadas, desviou um rio e afogou o exército inimigo. Por fim, ele inverteu e dobrou o pagamento do tributo. O rei de Tebas, Creonte, em agradecimento, entregou sua filha Megara à aliança com o herói, que se tornou, assim, o soberano de Tebas. Com Megara, Alcides teve três filhos**: Terímaco, Creontíades e Deicoon.
* Diz-se que a caminho de Tebas, Hércules teria encontrado duas belas mulheres, Hedoné (o Prazer) e Areté (a Virtude). Hedoné tentou seduzi-lo com seus olhos gulosos, mas as palavras centradas da modesta e pudica Areté o convenceram e, a partir da quele momento, o herói seguiria uma vida sofrida porém virtuosa.

** Segundo Apolodoro, Hércules e Megara tiveram três filhos, porém, conforme Píndaro, foram oito e outras versões dizem que foram cinco ou sete. Independente da quantidade, o gênero sempre foi masculino, numa reflexão de "homem gera homens".
Anos mais tarde, Alcides detinha-se diante de uma lareira prestes a sacrificar um cordeiro em oferenda aos deuses quando Hera enviou Lýssa (a raiva) e Anóia (a demência) para exacerbar seu temperamento explosivo. Transtornado e enlouquecido, o herói acaba substituindo os cordeiros por seus filhos, lançando-os na fogueira. Lançou-se, em seguida, contra os filhos de Íficles e matou dois deles, enquanto seu irmão Íficles retirava Megara, seu primogênito Iolau e todos os outros do palácio. Passado o rompante, Alcides adormeceu. Ao despertar e tomar conhecimento de seus atos, entregou Megara a Iolau* e decidiu partir ao Oráculo de Delfos em busca de uma possível forma de purificação para um crime tão hediondo.
* Alguns dizem que Iolau era não só sobrinho, mas também o jovem amante (eromenos) de Alcides e, por essa razão, avançou sobre ele. Existem versões desta história que Iolau salva Megara da fúria do herói. Posteriormente, ele permitiu que seu sobrinho se casasse com sua mulher num rito de passagem para a vida adulta.
Hércules e Iolau, mosaico romano, séc. I a.C.
Ruínas do Templo em Delfos.
Hera queria dar uma punição bem severa ao bastardo, então, procurou aconselhar Apolo*, deus responsável pelo oráculo. Então, a pitonisa de Delfos disse que Alcides precisaria se submeter humildemente às ordens de seu primo Euristeu**. Adorador de Hera e por ela induzido, o covarde Rei Euristeu começou a dar tarefas impossíveis e mortais para que o herói sucumbisse.
* Apolo também foi aconselhado por Atena, protetora de Hércules, e, assim, foi garantido perdão e imortalidade no fim das tarefas. Esta imortalidade pode ser uma reflexão sobre a eternidade do mito e não exatamente longa vida,

** Existem outras variantes dessa submissão de Hércules a Euristeu. Uma delas relata que o herói abandonou Tebas e pediu para retornar a Argos. Euristeu concordou com a condição que ele libertasse o Peloponeso de determinados monstros. Uma outra apresenta Hércules como amante do rei e estava somente realizando os caprichos de seu amado.
Outra versão conta que a loucura de Alcides é ação de Até a mando de Hera. A deusa traiçoeira sobrevoou a cabeça do herói com um véu invisível que transformou seus filhos em dragões. Usando mesas e cadeiras, ele destruiu todo o salão e esmagou a cabeça dos dragões. Quando Até retirou o véu, Alcides chorou. Creonte o baniu de Tebas e Megara o abandonou. O rei Téspio recebeu o arrependido herói até que um mensageiro de Micenas apareceu com uma mensagem de Euristeu ordenando que Alcides passasse a servi-lo, confirmando a profecia de Zeus. Téspio aconselhou Alcides a procurar o Oráculo de Delfos para ter certeza de suas próximas ações. A resposta afirmativa aliviou o herói e, assim, aconteceram os famosos Doze Trabalhos.


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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Até

Até (Atea) é a deusa grega do erro, da fatalidade, personificação das ações irreflexivas e suas consequências. Tipicamente, faz referência aos erros cometidos tanto pelos mortais como pelos deuses, normalmente devido a sua companheira Húbris, o excesso de orgulho, que lhes levam a perdição ou a morte. No entanto, em muitas situações, alerta os homens de suas desatenções, sendo assim um divindade considerada sábia.

Até vivia no Olimpo, mas foi banida por Zeus após ajudar Hera a prejudicar o nascimento de Hércules e passou a viver entre os mortais. Divindade alada, leve e ágil, seus pés apenas roçam a cabeça dos  homens sem que eles percebam. Todas ações desleais dos mortais são atribuídas a sua insidiosa influência. Em grego antigo, até significa "ruína", "insensatez", "engano", e hoje, palavra fraude significa "aquilo que vem de Até".

Seu banimento do Olimpo é uma metáfora do erro humano: como se no momento que saiu do Olimpo as ações divinas passaram a ter sempre um significado correto e somente a humanidade pode errar. É o famoso "Deus escreve certo por linhas tortas" na versão grega.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

HÉRCULES: Implacável perseguição

O nascimento de Hércules, ilustração de
Jean Jacques François Le Barbier
Por ser deusa do casamento, Hera não podia ser condescendente com as traições de seu marido. Sendo assim, seu ciúme resultava em constates maus tratos às amantes e bastardos de Zeus. Quando o deus declarou que o primeiro filho nascido dentre os Perseidas (descendentes de Perseu) se tornaria o rei que dominaria os irmãos*, Hera antecipou em dois meses o nascimento de Euristeu - filho do perseida Estênelo com Nicipe - que veio a se tornar Rei de Micenas, Mideia e Tirinto.
* Alguns registros dizem que Zeus ficou furioso com os atos de Hera. Assim que viu sua esposa conversando com Até, deusa da fatalidade e das ações impulsivas, percebeu que havia sido enganado: pegou a deusa alada pelos cabelos e a arremessou para fora do Olimpo, nunca mais podendo retornar.
Além disso, a deusa enviou sua filha Ilítia* como parteira para dificultar o parto e aumentar as dores de Alcmena e pediu às Parcas para retardarem o nascimento do filho de Zeus (elas se sentaram na porta da jovem de braços e pernas cruzadas). Somente após uma jovem tebana chamada Galintia enganar as Parcas e Ilítia dizendo que o bebê nascera, que Alcmena, enfim, conseguiu dar à luz, após dez meses de gestação, tanto a Alcides, filho de Zeus, quanto a Íficles, filho de Anfitrião.
* Ilítia, deus do parto pode não ser filha de Hera, mas sim uma instância em particular da própria rainha dos deuses.
Alcmena ficou tão assustada por estar metida no meio de uma briga entre deuses que abandonou Alcides fora de Tebas. Zeus pediu que Atena levasse Hera a encontrar o bebê e, sem reconhecê-lo, a deusa apiedou-se e o amamentou, salvando sua vida inconscientemente. Posteriormente, Atena devolveu o bebê a Alcmena, que decidiu criá-lo. Uma outra versão desta história conta que Zeus pediu a Hermes a para fazer Hera amamentar o bebê. O deus esperou que ela dormisse e levou Alcides ao seio divino, que começou a se amamentar como planejado, mas, depois de um tempo, sugou com tanto força que acordou a deusa. Assustada, Hera empurrou Alcides: um esguicho saiu de seu seio e criou a Via Láctea, enquanto as gotas que pingaram na terra se transformaram em flores-de-lis. Alcides não bebeu o suficiente para se tornar imortal, mas ganhou força descomunal e resistência sobre-humana.

A origem da Via Láctea, óleo sobre tela de Tintoretto, 1575-80.

Héracles infante, de Innes Fripp.
Alcides teve que se defender das perseguições de Hera desde sua tenra infância. Depois do episódio da amamentação, ela o transformou em seu principal alvo. Zeus nomeou sua filha Atena protetora de seu meio-irmão semideus. Ela mandava sua coruja da sabedoria abanar o berço nas noites quentes de verão.

Certo dia, a coruja foi atrás de um rato que estragara o bordado mais fino de Atena, mas não sem antes falar para Alcmena proteger as crianças. Ela colocou doze bordadeiras no quarto. Porém, assim que elas adormeceram, Hera enviou duas terríveis serpentes com escamas azuis e olhos flamejantes para envenenar a criança adormecida. No entanto, pela manhã, o choro do bebê Íficles e a gritaria das criadas levou Anfitrião de espada em punho e Alcmena desesperada ao quarto dos dois, onde encontraram Alcides sentado, gargalhando e segurando as duas serpentes que ele estrangulara com as próprias mãos. Foi a prova final para Anfitrião acreditar na origem divina da criança. Inclusive, alguns estudiosos creem que foi Anfitrião que levou as serpentes aos berços para saber qual das duas crianças era o filho de Zeus.

Hércules estrangula as cobras na frente de Anfitrião e Alcmena, fragmento de afresco em Pompeia.

Com olhos orgulhosos e força descomunal, cresceu tão alto que confundia-se a gigantes (dizem 3 metros!). Gostava de correr sob as estrelas, aprendeu a refletir e também a lutar. Porém, seu temperamento agressivo criou inúmeras situações constrangedoras e trágicas.


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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

HÉRCULES: Genealogia divina

Antigas histórias colocam Zeus e Io como pais de Hércules, mas, na versão clássica, ele é filho do deus com a princesa mortal Alcmena (Alcmene), filha de Electrião (Eléctrion), rei de Micenas, que por sua vez era filho de Perseu e Andrômeda. Alcmena era alta e imponente, por muitos considerada a mais sábia e formosa mulher de Micenas. Suas trancas grossas e sedosas emolduravam um rosto encantador e seus longos cílios escuros adornavam olhos grandes e expressivos.

Electrião teve seu poder ameaçado por assaltantes da Táfia (os teléboas, homens com voz de trovão) que roubaram o gado e lhe mataram seus nove filhos homens. Seu sobrinho Anfitrião, general de Tirinto, encontrou o gado a salvo nos campos do rei da Élida e o comprou. Quando Electrião soube que ele teve que pagar para voltar a ter seus animais, ficou furioso com o sobrinho. Anfitrião atirou sua clava em um touro com tanta força que ela ricocheteou e acertou Electrião, matando-o.

Banido do reino, levou sua amada prima Alcmena para se casar em Tebas, onde foi purificado pelo Rei Creonte. A jovem aceitou o pedido com a condição de que o noivo deveria primeiro vingar seus irmãos mortos. Creonte aceitou ajudar Anfitrião se ele libertasse Tebas da Raposa de Têumesso, um animal sanguinário que, para conter sua selvageria, recebia mensalmente dos tebanos uma criança do sexo masculino para devorar. Como a raposa era protegida de Poseidon e jamais poderia ser pega, Anfitrião pediu para Céfalo, rei de Atenas, emprestar-lhe Lélape, o cão de Zeus que jamais perdia uma presa. Na disputa entre o animal que não pode ser pego e o animal que não perde sua presa, Zeus decidiu transformá-los em pedra e ascendê-los às constelações de Cão Maior e Cão Menor. Anfitrião teve, então, seu exército para se vingar dos teléboas.

Foi justamente quando Anfitrião se encontrava ausente, no cumprimento da tarefa imposta pela noiva, que Zeus pôs em marcha seu plano para seduzir Alcmena (que, em grego, significa “assediada por dois”) e dar ao mundo um herói como jamais houvera, aquele que uniria os Estados Helênicos. Metamorfoseado como Anfitrião, Zeus apresentou-se à jovem contando-lhe detalhes da batalha empreendida, dos golpes certeiros e apresentando como prova definitiva de sua identidade a taça de ouro utilizada pelo monarca derrotado, a qual inclusive ofertou à amada. Durante três dias consecutivos, Helios não percorreu o céu com o carro do sol, e durante essa longa noite - na qual a deusa da lua Selene permaneceu em atividade -, o deus dos deuses amou ardentemente Alcmena. Nesse período, Hermes pediu para Hipnos colocar o mundo todo para dormir e, assim, não suspeitar da longa noite. Depois, metamorfoseado em Sósia, um escravo de Anfitrião, Hermes guardou o portão.

Alcmena e Zeus. Gravura de Nicolas-Henri Tardieu.

Ao retornar, Anfitrião estranhou a reação da noiva, que o tratou com relativa indiferença, visto que esta acreditava já tê-lo encontrado nas noites anteriores. Anfitrião consultou o adivinho Tirésias que lhe revelou o ocorrido*. Irado, colocou Alcmena numa enorme pira e ateou fogo, mas foi detido por uma chuva torrencial enviada por Zeus para apagar as chamas. Compreendendo o sinal divino, Anfitrião reconsiderou e casou-se com Alcmena.
* Em inglês, padrinho é godfather. Esse termo pode ter vindo desse mito, uma vez que a primeira noite de núpcias competiu ao deus e, portanto, o primogênito não pertence ao pai biológico.
Essa compreensão acabou por transformar Anfitrião numa personificação do bom acolhimento. De marido traído e pai não-reconhecido, o rei se tornou aquele capaz de suportar as dificuldades das missões divinas impostas.

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